Um discurso para memória futura?
O Presidente da República presidiu às cerimónias militares de evocação dos 200 anos da Batalha do Bussaco. O Chefe de Estado deslocou-se ao concelho da Mealhada, foi recebido no Palace Hotel do Bussaco pelo Presidente da Câmara Municipal da Mealhada – que estava acompanhado do Ministro da Defesa e do Chefe do Estado Maior do Exército – participou nas cerimónias militares e partiu.
A vinda ao Bussaco deu-se entre vários compromissos do Chefe de Estado no litoral do país, todos eles dedicados à temática do Mar, enquanto área estratégica do desenvolvimento de Portugal. Cavaco Silva esteve no Bussaco pouco mais de hora e meia. Participou na qualidade de Comandante Supremo das Forças Armadas, proferiu um discurso, cumprimentou as centenas de pessoas que ali se haviam deslocado para o ver e saiu. Cavaco Silva não participou na inauguração da nova exposição multimédia do Museu Militar do Bussaco – que nesse dia fez 100 anos. Cavaco Silva – que no final desse dia havia de dizer que já andava a comer bacalhau há dois dias – não almoçou na terra da Mesa com Quatro Maravilhas, deixando ao Duque de Kent a presidência do repasto no Palace Hotel do Bussaco, no final das comemorações.
A passagem do Presidente – que não deixa de ser uma grande honra e um motivo de orgulho – pelo concelho cuja a Assembleia Municipal, há três meses, aprovou, por maioria, um voto de repúdio pelo seu “comportamento no falecimento” de José Saramago, reduziu-se ao essencial. Aliás, tão essencial como o “comportamento” nas exéquias fúnebres. Em ambas as situações – permitam-nos a opinião pessoal – o presidente agiu com coerência.
O discurso do Presidente da República foi, aparentemente, simples e circunstancial. Quando terminou, os jornalistas presentes – que esperariam um recado objectivo na véspera da recepção aos líderes dos partidos com assento parlamentar – garantiriam que nada disse de especial, para além de um apelo final à união em benefício da segurança e do desenvolvimento da Pátria!
Cavaco Silva é um homem hábil e profundamente metódico. O que disse no Bussaco, não se percebe de uma só leitura.
Desde a primeira linha do discurso, o Presidente da República transporta quem o ouve para a manhã de 27 de Setembro de 1810. A prelecção do Chefe de Estado, nalguns momentos com recursos estilísticos próximos da poética – o que não deixa de ser surpreendente em quem é acusado de ter falta de cultura geral –, fala “da angústia do sofrimento humano lado a lado com o esplendor da coragem e do patriotismo”. Da “raiva dos vencidos e o júbilo dos vitoriosos”.
Cavaco Silva fala de um Portugal, em 1808, desmembrado e fraco, apoiado e já subjugado a uma elite estrangeira paternalista. “Os portugueses”, no entanto, “distinguiram-se sobretudo no combate corpo a corpo, à baioneta, olhando nos olhos o inimigo, aí onde a coragem individual é submetida à maior das provas”.
O Presidente da República justifica a ida ao Bussaco com o “cumprimento de um compromisso solene: o de manter viva a memória do seu exemplo de dedicação à Pátria”.
A transposição que Cavaco Silva faz para a manhã de 27 de Setembro de 1810 é tal, que chega a encarnar a figura do oficial português que se vê na contingência de “empolgar os seus soldados”. E Cavaco encarna mesmo o personagem, “com voz, trémula de emoção, mas determinada, quebrando o silêncio”. O Comandante Supremo das Forças Armadas Portuguesas, num tipo de discurso que nunca lhe tínhamos ouvido, fala, mesmo, aos “soldados de Portugal”. Ouve-se o que Cavaco acha que deve ter sido dito há duzentos anos, ou o que ele, como Chefe de Estado quer dizer hoje, aos portugueses de 2010?
“Temos de vencer”, diz Cavaco, “porque nós não combatemos para conquistar, mas para não sermos conquistados. Nós não combatemos para invadir, mas para obrigar o invasor a retroceder. Nós não combatemos para mudar os outros, mas para que não nos mudem a nós pela força. Porque nós combatemos para defender a nossa Pátria. Defendemos a nossa vida, a nossa maneira de viver (…) defendemos a nossa sobrevivência como Nação soberana, para que possamos continuar a ser quem somos e a ter o direito de agir de acordo com a nossa vontade”.
Na véspera de receber os líderes dos partidos políticos num momento em que, a três meses de eleições presidenciais, Cavaco Silva sabe que a crise politica é iminente e que nenhuma das soluções possíveis é vantajosa para a Nação, o Chefe de Estado usa da poesia para se mascarar de oficial de um exército de miseráveis para exortar a inspiração e a esperança “na nossa vida colectiva enquanto povo”.
“No passado os Portugueses souberam, sempre, vencer a adversidade e decidir, em liberdade, o seu próprio futuro como Nação soberana e independente. (…) Também hoje, para vencer os grandes desafios que enfrentamos, dependemos sobretudo da nossa determinação e do nosso esforço colectivo”, concluiu Cavaco.
O presidente da República: que sabe que não pode dissolver a Assembleia da República; que sabe que não pode obrigar a oposição a aceitar um orçamento que contraria o que tem propalado nos últimos meses; que sabe que não pode impedir o Governo de se demitir e de estar em gestão e campanha eleitoral nos próximos nove meses; que sabe que estando aberta a campanha eleitoral presidencial tem pelos menos quatro personagens a contestar tudo o que faz ou diz diante das televisões; que sabe que já não controla o que quer que seja, declara: “Temos o dever, perante os nossos antepassados e perante nós próprios, de nos unirmos em torno de soluções corajosas, justas e responsáveis que permitam assegurar um futuro de desenvolvimento, segurança e bem-estar para Portugal”.
O Comandante Supremo das Forças Armadas Portuguesas falou à Nação e disse muito mais do que à primeira vista foi entendido. Falou da sua própria impotência perante a realidade dos dias de hoje. Falou da situação limite em que a Nação se encontra. E tudo o que disse foi em frente “aos soldados de Portugal”, foi aos “soldados de Portugal”.
Não se ouviu, nas televisões uma palavra proferida no Bussaco. O discurso (ao contrário de todos os outros) não está disponível no sítio da presidência [Foi colocado na madrugada de 29 de Setembro, já depois do fecho da edição impressa do JM]. Cavaco arriscou e exortou o exército a manifestar-se, disse muito mais do que seria de esperar. Mesmo que muito poucos o tenham entendido. Talvez tenha falado para memória futura.