O Xaru faria hoje 87 anos. Faria, porque faleceu há 17 dias, em 29 de dezembro de 2020. As limitações da pandemia permitiram-nos fazer-lhe uma última despedida condigna, mas reduzida ao mínimo. Na ocasião, para a página de Facebook da associação, para as necessárias participações à Liga dos Bombeiros e aos Corpos de Bombeiros do distrito, mas também para os jornais locais, escrevi algumas linhas que, depois, puderam servir de base para, na oportunidade que me deu o Padre Rodolfo, nas cerimónias fúnebres, poder render-lhe uma derradeira homenagem.
O Xaru – confesso que só muito tempo depois de conviver com ele decorei o seu nome de baptismo: Joaquim Santos Fernandes – é alguém de que me lembro há muitos, muitos anos. A imagem dele sempre se associou imediatamente, na minha cabeça, aos bombeiros da Mealhada, e juntava-se, naturalmente, à ideia de que era o quarteleiro, dada a devoção que lhe era reconhecida de zelar pelo quartel e pela sua organização funcional.
Eu tomei posse como presidente da direção dos Bombeiros da Mealhada no dia 10 de janeiro de 2013. O Xaru não foi à tomada de posse. Mas no dia seguinte, quando fui ao quartel para começar a trabalhar, vi-o, numa cadeira que tinha junto da Dona Alzira, na secretaria, onde se sentava, de lado, religiosamente. Cumprimentei-o com graça suficiente para lhe engatilhar alguma simpatia e um pedido de ajuda e de continuidade na colaboração. O Xaru deu-me aquele sorriso aberto que sempre tinha, encolheu os ombros e ter-me-á dito que estaria sempre por ali.
Convenhamos que o intruso era eu… não era ele. Nessa altura, o Xaru já tinha visto passar por aquele lugar, nada mais nada menos do que 12 presidentes de direção, quase todos. Eu era o 13.º e o primeiro com idade para ser seu neto…Também tinha a propriedade de ter sido comandado e de ter colaborado por e com todos os comandantes que a corporação teve ao longo das muitas décadas que somava.
Só o dia-a-dia, o facto de me ver ali todos os dias, e as perguntas que lhe ia fazendo, levaram o grande Xaru a aproximar-se mais um bocadinho e a dar-me o que poderia chamar-se ‘o benefício da dúvida’.
Começou por me falar de umas fotografias antigas que faria sentido reproduzir para meter no espaço museológico que o quartel tinha no rés-do-chão. ‘Força nisso, Xaru!’, disse-lhe eu. Depois fui eu que lhe pedi para ele arranjar as fotografias que faltavam para a galeria fotográfica dos comandantes, e depois dos presidentes da direção e depois dos presidentes da assembleia-geral e depois dos antigos elementos de comando… E depois dos crachás de ouro (onde ele se incluía).
Com um mês de antecedência o Xaru abordou-me para me dar conta de tudo o que era preciso fazer para a festa de aniversário. Faria a mesma coisa com a Ceia de Natal. Ele tratava de tudo. De falar com os amigos que vinham cortar o leitão, de arranjar o próprio leitão, e os frangos e tudo. Incluindo lembrar o comandante que era preciso pedir aos voluntários que arranjassem as mesas.
Com o tempo, já era o Xaru que me vinha contar uma ou outra história de que se lembrara entretanto para a História dos Bombeiros. No dia em que falei das obras do quartel, do que pretendíamos fazer, o Xaru respondeu-me: “Isso já não é para o meu tempo”. Enganou-se, felizmente. Ainda viu as obras feitas. Mas lembro-me que nesse mesmo dia pediu-me que lhe arranjasse um espaço para a coleção dele de lembranças dos Bombeiros. Uma coleção imensa que materializa a sua paixão pelos Bombeiros. ‘Claro que sim’ respondi-lhe eu.
No dia que fez 80 anos, chamávamos a televisão e tirei uma fotografia com ele à beira do Internacional, que tem o seu nome, e que a par do Chevrolet eram as ‘meninas dos seus olhos’. Um fotografia que guardo como se fosse uma preciosidade. Tirei outra, há menos tempo, em Dezembro de 2017, com ele e com o Comandante Felgueiras. Outra preciosidade.
Foi um privilégio ter o Xaru por perto. Beneficiar da sua visão histórica da corporação. Conseguir beber ensinamentos, partilhar visões e pontos de vista.
O Xaru é o melhor de nós.
O melhor, no sentido de ser a corporização daquilo que é o mais positivo e humanos e bonito do que têm e podem ter os Bombeiros de Portugal. Mas também no sentido de ser o bombeiro mais dedicado, mais abnegado, mais despojado que conheci.
O Xaru tornou-se bombeiro aos 14 anos. Mas garantia que antes mesmo dessa idade, já o padrinho o levava para o quartel e já por ali andava. Fez a sua progressão como bombeiro, dedicado e empenhado.
Muitas crianças nasceram com o apoio dele. Muitas pessoas morreram amparadas por ele. Para além das que foram salvas graças a ele.
Foi um bombeiro voluntário na grande acepção da palavra.
Depois de ter deixado de ser bombeiro, oficialmente, por limite de idade, continuou a deslocar-se diariamente ao quartel, a sua casa.
Trabalhou e ajudou todos os comandantes da corporação e trabalhou e ajudou todos os presidentes da direção da associação nos ultimos 70 anos.
Sempre foi alguém que movia montanhas para ajudar a associação e a corporação. Em 1974, por sua auto-recriação, com mais dois ou três bombeiros deslocou-se ao Palace Hotel do Bussaco porque sabia que estava lá hospedado o Marechal António de Spínola, presidente da República.
E lá foi pedir ao Presidente da República uma nova viatura para a corporação. Chegou lá e o Presidente, um militar de carreira, disse-lhe que tinha de ser o Comandante ou o Presidente da Direção a fazer o pedido, não podia ser um bombeiro.
Então, lá veio o Xaru buscar o comandante e o presidente da direção, pedir o carro.
O Xaru recebeu a mais alta condecoração dos bombeiros portugueses – o crachá de ouro -, para além de várias viaturas às quais foi dado o seu nome.
Vai deixar muitas saudades e é um exemplo para toda a gente que gosta dos bombeiros.
Saibamos honrar o seu legado.
[2459.] ao #15270.º