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Padre-abilio
Quem o conheceu sabe que o Padre Abílio Simões não ficaria agradado, sequer confortável, com grandes elogios à sua pessoa. Fugiria deles, evitá-los-ia, faria o que estivesse ao seu alcance, até, para os boicotar. Custar-lhe-ia ver o busto edificado em sua homenagem e o impacto que têm fotografias em sua memória nas redes sociais – que quando faleceu eram ainda incipientes.
Faleceu há dez anos. Passou uma década e parece que foi ontem. Parece que foi ontem que pediu que repetíssemos o menu de pizas na sua última noitada de fecho de edição do Jornal da Mealhada, com uma sacada de tangerinas que tinha trazido “da terra” como sobremesa. Parece que foi ontem que todos sentimos o choque e a impotência de conhecer a fatídica notícia de que tinha falecido.
Cerca de um mês antes de falecer, tínhamos conversado – a propósito da morte de um amigo comum – sobre a necessidade de que “quem cá fica” de fazer o luto, dando sinais visíveis e notórios da sua dor, como que para a exorcizar… O padre Abílio ouviu, encolheu os ombros e quebrando o contacto visual mirando o vazio – como fazia nas suas homilias – disse compreender, mas saber pouco sobre o assunto.
Foi a súbita morte do Padre Abílio que tornou o seu luto tão difícil e tão demorado. Era um homem excepcional. Um ser humano admirável. Com características humanas – de solidariedade, resistência, resiliência, de entrega, de dedicação – muito difíceis de reunir na mesma pessoa. Irascível, teimoso, algumas vezes rancoroso e sempre impetuoso, não era um homem sem defeitos. Ouviu coisas inacreditáveis da parte de pessoas a quem se dedicou, que ajudou sem pedir nada em troca. Guardou para si… a uns perdoou… aos outros não teve tempo.
Tinha um sentido de ironia como poucos – dizia-me muitas vezes que era a coisa mais difícil de escrever – e uma capacidade de escrita que contrastava de sobremaneira com o discurso dito. Quem o ouvia sentia aquele amargo de questionar: Como pode alguém que escreve tão bem… ser tão pouco apaixonante na oralidade…? Talvez fosse a página em branco que lhe dava a inspiração e uma reflexão profunda e demorada sobre o que queria escrever, como se ao falar fosse incapaz de combater o ácido da palavra que voa e lhe sai da boca sem autorização. Antes de se sentar a escrever um texto, já o tinha escrito e rescrito na cabeça. Fazia uma entrevista e anotava à margem, quase imediatamente, o título que havia de ser. Tal como anotava as páginas das folhas de jornal que o inspirariam no escritório e quarto que tantas vezes improvisava na sua carrinha.
Dificilmente seria um romancista. Corria-lhe nas veias um realismo, um sentido de análise e de crítica e avaliação que às vezes parecia contrapor o homem ao sacerdote. Mas tinha um dom, o dom de ser um observador criterioso.
Confesso que sinto saudades. Do amigo, do cúmplice, do crítico, do cronista ácido, do humorista desalinhado… e claro, dos conselhos… a falta que me fazem os conselhos… tantas vezes crípticos, quase em enigma. Alguns deles que só agora descodifico… como se fossem profecias…
Texto publicado no Jornal da Mealhada de 15 de fevereiro de 2017