10 Junho e a história de um feriado político
Evoca-se amanhã, 10 de Junho, Portugal, Luís Vaz de Camões e as Comunidades Portuguesas espalhadas pelo mundo. O Chefe do Estado presidirá às cerimónias oficiais, em Faro, e condecorará trinta e cinco personalidades e duas instituições portuguesas de reconhecido mérito. Feriado nacional – desde o inicio do Estado Novo, na década de 30 do século passado –, e ocorrendo nos últimos dias do calendário escolar, nem na escola se falará no seu significado. Continuarão os portugueses a pensar que ser patriota é ter uma bandeira nacional hasteada na janela de casa, como lhes foi sugerido em Junho de 2004. Ou que é tocar uma corneta de plástico comprada num posto de combustível, como o consumismo bacoco parece fazer crer em Junho de 2010.
Escusando-nos a chorar, por agora, mágoas sobre a falta de pedagogia do patriotismo – ou matriotismo, como sugeria Natália Correia –, exaltaríamos a história do feriado em si, do ‘10 de Junho’, para justificar a cultura do símbolos ao serviço da ideologia, do regime – de todos eles – ou do sistema, como agora parece ser mais popular dizer.
A história do ‘10 de Junho’ começa como um acto provocatório – e não é sempre assim que começam as grandes coisas em Portugal? –. Em 1880, em plena monarquia constitucional, a Sociedade Geografia de Lisboa, contra uma aparente apatia governamental, decide comemorar, com pompa e circunstância, o terceiro centenário da morte do maior poeta português Luís Vaz de Camões. O culminar dos festejos assinalar-se-ia a 10 de Junho, dia em que a tradição recordava como o do seu perecimento. Na comissão organizadora das festividades pontificavam nomes conhecidos, como o de Teófilo Braga, Sebastião Magalhães Lima ou Ramalho Ortigão. Nomes de ilustres republicanos que tomariam papel preponderante no governo de Portugal, trinta anos depois. Diria Teófilo Braga, mais tarde: “A festa da nossa primeira glória literária e artística foi simultânea por todo o território português, e fez-se por fundações fecundas de iniciativa individual, pela cooperação activa dos municípios, que compreenderam que eram os representantes directos da liberdade nacional, e pelo acordo de todas as classes sociais. O Centenário de Camões excedeu tudo quanto era possível prever”. Os republicanos portugueses viram nestas comemorações uma oportunidade igualmente importante como a que fora aproveitada pelos oposicionistas italianos nas comemorações da morte de Petrarca, em 1874, ou pelos radicais franceses na comemoração de Voltaire e Rousseau, em 1878. E o republicanismo aproveitou o sucesso.
Com a implantação da República e a abolição de muitos dos feriados nacionais observados – quase todos religiosos – o Estado cria a possibilidade de os municípios terem um dia de feriado municipal. Alguns municípios aproveitaram feriados já observados, como a Quinta-feira da Ascensão, na Mealhada e em muitos municípios da Bairrada. Outros, como Lisboa, optaram por escolher outra data. 10 de Junho, o Dia de Camões, passou, então, a ser feriado municipal em Lisboa.
Seriam Oliveira Salazar e António Ferro que resgatariam a memória de Camões para exaltação dos ideais nacionalistas e da justificação histórica e imperialista do regime do Estado Novo. Logo depois de 1933, o dia 10 de Junho tornar-se-ia Dia de Camões e de Portugal, comemorado com pompa e circunstância em todo o Império. “Camões era o génio da pátria na sua dimensão mais esplendorosa”, justificava Ferro. Os lisboetas passaram a gozar feriado municipal em 13 de Junho, Dia de Santo António.
Inauguração do Estádio Nacional do Jamor, em 10 de Junho de 1944. No seu discurso, Oliveira Salazar proclama o Dia de Camões e de Portugal, como Dia da Raça Portuguesa.
Na inauguração do Estádio Nacional do Jamor, em 10 de Junho de 1944, Oliveira Salazar rebaptizaria o dia nacional como Dia de Camões, de Portugal e da Raça. A partir de 1963, quando a Guerra Colonial já se estendia por um segundo ano, a glorificação patriótica tornou o dia como de memória dos mortos e de homenagem às Forças Armadas Portuguesas. Tornaram-se objecto de propaganda do regime e de comiseração colectiva as sessões solenes de entrega de medalhas às viúvas e aos pais dos soldados mortos no ultramar português.
Um decreto-lei de 1977, DL 80/77 de 4 de Março, volta a alterar a designação do 10 de Junho, passando este a homenagear, para além de Camões, também a emigração na diáspora, sendo acrescentada a designação “das Comunidades Portuguesas”.
Terá sido o esforço da sociedade civil organizada, nomeadamente pelo Movimento Nacional Luís de Camões, presidido pelo Capitão Leal Marques – residente em Mortágua com ligação familiar e afectiva à Mealhada – que conseguiu que se voltasse a comemorar o Dia de Portugal a 10 de Junho. O Decreto-Lei n.º 39-B/78 de 2 de Março de 1978, do governo de Mário Soares, promulgado por Ramalho Eanes, estabelece a denominação que ainda hoje se reconhece no 10 de Junho: Dia de Camões, de Portugal, e das Comunidades Portuguesas.
Ainda hoje o 10 de Junho é de comemoração cautelosa. “Caiu o Carmo e a Trindade” quando o actual Presidente da República retomou as paradas militares e quando, chamou ao dia, Dia da Raça. Perceber que a mudança dos tempos e a perenidade da história valoriza a nossa cultura e tradição é, também, um gesto de patriotismo.
Editorial do Jornal da Mealhada de 9 de Junho de 2010