Por quem os sinos dobram
“Nenhum homem é uma ilha isolada:
Cada homem é uma parcela do continente, uma parte do todo.
Se um torrão é arrastado pelo mar, a Europa fica diminuída, tal como se fosse um promontório, como se fosse um homem ou os teus amigos, ou como se fosses mesmo tu.
A morte de qualquer homem diminui-me porque pertenço à Humanidade.
Por isso nunca te perguntes por quem os sinos dobram: dobram por ti.”
Este é um excerto do texto “Por quem os sinos dobram” de John Donne, poeta inglês dos séculos XVI/XVII. Em 1940, Ernest Hemingway recuperava a ideia e utilizou-o como base para o título do seu romance sobre a Guerra Civil Espanhola, “Por quem os sinos dobram”.
O texto de Donne remete-nos para a relação de cada um com o mundo, com os outros e com a nossa própria vida. Ao mesmo tempo, lembra-nos, de igual modo, a vulnerabilidade da vida às agruras do tempo, da doença, das convulsões sociais e políticas. Entendemos, também, nas palavras de Donne, uma chamada de atenção para a consequência das nossas acções na vida dos outros e vice-versa.
Numa época em que, oficial, efectiva e conscientemente, estamos em crise económica, as palavras do poeta inglês revestem-se de particular oportunidade e interesse. Pudemos comprovar a existência do chamado efeito borboleta — o bater das asas de uma borboleta no Japão (expressão metafórica) provoca uma tempestade na Europa —, com as consequências económicas na Europa da falência de um banco americano. Por outro lado, a eleição de Barack Obama, por exemplo, parece ter insuflado de esperança não apenas os Estados Unidos da América mas todo o mundo. O mundo está hoje muito mais pequeno do que no tempo de Donne, e todos sentimos, na pele e em casa, as consequências de muitas das medidas tomadas em qualquer parte do globo.
Sentimos isto na crise económica que está a assolar o mundo, mas, mesmo economicamente, poderemos dar outros exemplos, como o da indústria e da ofensiva mercantil chinesas que estão a desequilibrar de forma preocupante os preços no mercado europeu. Como há outros, o problema ambiental, o das alterações climáticas, ou o do excedente de produção agrícola e a fome em algumas partes da Terra.
Esta nova dimensão e vulnerabilidade global não nos deve, no entanto, fazer baixar os braços. O criptograma chinês para a palavra crise inclui dois componentes — perigo e oportunidade — a lembrar-nos que não somos meras vítimas dos acontecimentos. Em qualquer crise há o perigo de falhar, falhar no acto de agir apropriadamente ou falhar no acto de agir efectivamente, mas também nos é dada a oportunidade e a justificação para começar de novo, de inovar, de fazer ainda melhor.
Donne, no final do seu texto — e também Hemingway no seu romance — aborda concretamente a vulnerabilidade da vida humana — a morte de qualquer homem diminui-me. De qualquer homem, note-se. Para Donne os homens poderiam ser católicos ou protestantes, para Hemingway seriam republicanos ou falangistas, mas todos importam para a contabilidade aludida. Todos devemos sentir a morte de alguém, mesmo que não conheçamos essa pessoa ou que retenhamos dela apenas a memória de um encontro de breves minutos. O que essa pessoa foi capaz de fazer da sua vida ao serviço dos outros, no seu trabalho, na educação dos seus filhos, no auxilio aos seus amigos, no testemunho do seu sofrimento e da sua coragem, e os reflexos maiores ou menores que tudo isso possa ter tido ou/e continuará a ter na sociedade tudo isso deixa marca, tudo isso fortalece, dá uma perspectiva de perda no momento da morte, por um lado, e, por outro, uma mais forte sensação do valor da vida e das pessoas.
Em memória de Fernando Oliveira Várzeas
Editorial do Jornal da Mealhada de 26 de Novembro de 2008