“Sicília hispânica”?

Pediram a Alberto João Jardim, presidente do Governo Regional da Madeira, que expressasse a sua opinião sobre o caso de investigação judiciária “Face Oculta”. O líder autonómico, conhecido pelo seu sentido crítico e, por vezes, humorado com que analisa os temas políticos nacionais, manifestou-se preocupado com os interesses da Madeira e dos madeirenses e disse: “O que se passa na Sicília hispânica é um problema daquela gente que eu não tenho nada com isso, nem quero saber daquilo para nada”.
A Alberto João Jardim já chamaram Bocaça e dirigiram outros epítetos parecidos que, se têm alguma justificação séria, põem em causa a sua legitimidade para comentar, com seriedade, assuntos como o do favorecimento político a empresas e pessoas em troca de benesses financeiras. Mas a verdade é que os casos de alegada corrupção que vão enchendo os telejornais são já em volumoso número e a pergunta impõe-se: Será Portugal um Estado mafioso?
O processo Face Oculta investiga alegados casos de corrupção e de outros crimes económicos relacionados com empresas do Estado e empresas privadas, havendo, à data, quinze arguidos, incluindo o presidente da REN (Redes Eléctricas Nacionais), José Penedos, e Armando Vara, vice-presidente do Millenium/BCP, que, em face da situação, suspendeu as suas funções no referido banco. Armando Vara foi ministro no Governo de António Guterres. A este caso – o mais recente – podem juntar-se o caso Freeport – em cujo processo se investigam os contornos do processo de licenciamento de um espaço comercial em Alcochete – ou o caso Portucale – dos sobreiros em Benavente – ou o dos submarinos. Em todos eles estão envolvidas pessoas que já fizeram parte de altos quadros da administração pública portuguesa ou que estão ainda ligadas ao sector empresarial do Estado. Com tantos casos, se forem provadas as acusações neles contidas o que faltará para Portugal poder ser considerado um Estado mafioso?
A verdade é que em Portugal a corrupção não é socialmente condenada. Para muitos portugueses um corrupto é apenas um espertalhão, não é um criminoso. Uma pessoa pode ser (apenas) arguido num processo de corrupção, mas não deixará, por isso, de fazer parte do conjunto dos amigos do primeiro-ministro de Portugal, e de receber deste telefonemas de solidariedade. É certo que Armando Vara não foi condenado e deve continuar a ser considerado inocente, mas não é estranho que o primeiro-ministro não se distancie de situações destas? A ponto de as condenar? Sabemos que o primeiro-ministro andou a telefonar para pessoas que tinham o seu telefone sob escuta e que foram gravadas as conversas que, por esse meio, teve com elas. Há quem ache que se trata de espionagem política. Augusto Santos Silva queixa-se de que há cinquenta e duas cassetes com gravações de conversas em que participou o primeiro-ministro.
Em Portugal a forma de corrupção em causa chama-se cunha. E está tão vulgarizada que não choca ninguém. As pessoas, nas suas relações pessoais, já contam com isso. Procuram agradar e não criar conflitos com quem ‘pode um dia ajudar’. É frequente as pessoas dizerem “Olhe que eu votei em si!”, quando se dirigem ao presidente da Câmara ou da Junta de Freguesia, no sentido de verem facilitada a sua pretensão, por exemplo.
Muitos portugueses não compreendem que a corrupção – grande ou pequena – prejudica todos e, duplamente. Porque ao prejudicar o Estado somos todos prejudicados, e porque quando num contrato ou num serviço, alguém é beneficiado indevidamente, alguém foi prejudicado.
Alguém espera alguma coisa de concreto e significativo, ou seja, penalizações severas, para os casos que estão a ser objecto de investigação, a que aludimos? Falta reprovação social ao assunto para casos deste género. Ainda que a sociedade não condene, o Estado de Direito tem obrigação de analisar?
Em 5 de Outubro de 2006, o Presidente da República, no discurso do Dia da Implantação da República, dizia que a corrupção “é uma excepção no comportamento dos nossos agentes políticos”. “A corrupção tem um potencial corrosivo para a qualidade da democracia que não pode ser menosprezado. (…) Da corrupção decorre outro efeito altamente perverso para a qualidade da democracia: julgando que, de um modo generalizado, o comportamento dos titulares de cargos públicos não é exemplar, os cidadãos deixam de possuir modelos de acção e referenciais éticos nos seus próprios comportamentos”.
Se for provado que os políticos – ministros e, até, o primeiro-ministro – estão ou estiveram envolvidos, directa ou indirectamente, nestes caso de corrupção, poderá alguém, com razão, considerar desajustado chamar a Portugal Sicília Hispânica?

Editorial do Jornal da Mealhada de 18 de Novembro de 2009