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Novos direitos, velhas obrigações

O direito ao descanso, à tranquilidade e ao sono são direitos fundamentais, decorrentes do direito à integridade física e do direito ao ambiente e qualidade de vida preceituados nos artigos 25.º, n.º 1, e 66.º da Constituição da República Portuguesa. Igualmente valorizados pela lei fundamental são o direito ao trabalho, o direito dos consumidores, o direito à cultura e à diversão. Surgem, no entanto, conflitos entre quem se sente agredido naqueles que são direitos que lhe assistem. Conflitos que nem sempre se resolvem em tempo útil e se intensificam a ponto de uma resolução pacífica impossível.

No conjunto destes conflitos encontram-se tipos de diferentes naturezas. Conflitos de vizinhança, do foro privado, entre quem pretende descansar e quem pretende ganhar dinheiro, por exemplo, mas também do foro público, entre aqueles que procuram condições de qualidade de vida e os que, à luz do direito ao trabalho, poluem o meio-ambiente de várias formas, prejudicando todos os outros. Muitas vezes, só a barra do tribunal e uma decisão judicial conseguem sanar o conflito. Noutras vezes… nem isso. Entretanto destroem-se vidas.
Existem conflitos manifestos, destes dois tipos, no concelho da Mealhada. E se os conflitos do foro público, aludidos, devem merecer o direito à indignação por parte de todos, os outros, os do foro privado, merecem a atenção da comunidade que deve procurar solucioná-los a contento de todos.

Na presente edição apresentamos uma reportagem sobre um número considerável de casos, quase todos com conflito evidente, entre pessoas que se queixam de estarem a ser violentadas no seu direito ao descanso, ao sono e à tranquilidade, e os proprietários de estabelecimentos comerciais, alguns deles de animação nocturna, localizados no concelho da Mealhada, que se consideram lesados pelas queixas dos primeiros.
Estudos científicos comprovam que a ausência de descanso e a perturbação do sono, são factores cruciais para o desenvolvimento de problemas de saúde de variada ordem. São também factores determinantes na produtividade dos trabalhadores. Até que ponto será licito admitir que alguém seja sujeito à sevícia de ser privado do descanso no interior da sua residência?

Um empresário, no momento em que se estabelece e inicia a sua actividade, poderá ter expectativas de rendimento que a actual situação económica não propicia. Poderá sentir-se tentado a alterar a sua oferta, a promover realizações especiais no sentido de aumentar os seus lucros. Está no seu direito fazê-lo. Para isso terá de cumprir a lei do ruído e providenciar um conjunto de actos administrativos de licenciamento. Não tem o direito, no entanto, assim consideramos, de violentar as outras pessoas.

Entre estes dois protagonistas há outras personagens importantes que na reportagem que publicamos foram também interpeladas. A Câmara Municipal a quem cabe o licenciamento dos espaços e o estabelecimento dos horários, mas que é também quem passa as licenças para a realização de actividades pontuais de animação e quem recebe o resultado das multas por excesso de ruído. A Câmara Municipal da Mealhada tem também a característica de ser a proprietária de um dos estabelecimentos sobre quem impende a acusação de violação do respeito pelo direito ao descanso da vizinhança.

O outro protagonista é a Guarda Nacional Republicana a quem cabe a fiscalização do cumprimento da lei o ruído. É quem recebe a queixa dos que se consideram violentados e quem interpela os alegados prevaricadores. Quem, em primeira análise, ajuíza e, muitas vezes, pune, apenas com a sua presença.
Em relação a estas duas entidades há algumas questões que a reflexão suscita: Até que ponto estão em consonância em relação às actividades uma da outra – sabe a GNR que estabelecimentos dispõem de licença especial para determinada realização? Se a Câmara tem conhecimento das queixas dos vizinhos porque razão repetidamente autoriza a realização de festas nesses estabelecimentos? Que instrumentos têm – GNR e Câmara – ao seu dispor para aferir do cumprimento ou incumprimento da lei do ruído?

Um terceiro personagem fundamental no meio deste conflito é o público. São os clientes a quem as realizações são dirigidas e que são, muitas vezes, os responsáveis pela existência de ruído no exterior dos estabelecimentos. Trata-se, muitas vezes, de pessoas que mesmo não estando alcoolizadas desrespeitam o descanso dos vizinhos do estabelecimento. Se por um lado foram cúmplices fundamentais na prevaricação, por outro lado são também os principais responsáveis, os geradores do conflito.

A poucos dias da comemoração de mais um aniversário da Revolução dos Cravos suscita-se a reflexão sobre a uma nova valorização social que toma a existência, na actualidade, de direitos fundamentais, liberdades, garantias e, claro está, obrigações sociais que até agora não eram tão levados em conta. As sociedades atingiram novos estádios de modernidade, de civilidade, e, apesar de a cartilha de direitos liberdades e garantias inscrita na Constituição da República de 1976 permanecer actual, existem hoje direitos fundamentais que, naturalmente, fazem nascer novas obrigações e um aprofundamento civilizacional de todos nós. O direito ao descanso, à tranquilidade e ao sono são disso exemplo.

Editorial do Jornal da Mealhada de 23 de Abril de 2008