No editorial do Jornal da Mealhada de 16 de Abril, deixámos a sugestão de se implantar na cidade da Mealhada um monumento aos combatentes na Guerra Colonial portuguesa (1961-1974). Dissemos, nessa altura, que este conflito, a “nosso ver tem sido um acontecimento histórico muito menosprezado – mesmo ao nível da busca de justificações históricas para o 25 de Abril de 1974. Nas escolas, segundo constatamos, raramente tem havido tempo para abordar o assunto. E, na televisão, a educadora do povo, mesmo os bons trabalhos de divulgação do tema – como a reportagem de Joaquim Furtado, na RTP — são bastas vezes preteridos em favor de jogos de futebol e de telenovelas de qualidade duvidosa. A Guerra Colonial ainda não foi tema devidamente tratado na sociedade portuguesa e corre o risco de vir a ser completamente ignorada pelas próximas gerações.”
Depois da publicação do editorial fomos abordados por várias pessoas a propósito do tema e nenhum dos nossos interlocutores contrapôs qualquer argumento contra o que dissemos. Do conjunto de todos eles, emerge uma opinião unânime: A Guerra Colonial portuguesa é, ainda hoje e trinta e quatro anos depois do seu término, um assunto tabu.
Importa, portanto, questionar: A democracia compadece-se com a existência de assuntos tabus?
As razões da ostracização do tema são várias. De entre elas, há algumas que apareceram nas conversas que atrás referimos. São muitas, ainda, as feridas que permanecem no conjunto dos portugueses, especialmente nos que participaram nessa guerra. Feridas conhecidas e desconhecidas. Feridas visíveis e invisíveis. Feridas que poderiam reabrir-se, voltar a sangrar, infectar-se, se o assunto fosse amplamente discutido. Como a maioria desses portugueses que se tornaram militares — quem sabe se quase a totalidade — tomou parte na contenda por imposição, por obrigação, é ainda doloroso falar nela, naquilo em que consistiu, nos episódios horrendos que nela se verificaram. Por outro lado, há também quem considere que o regime democrático procurou desresponsabilizar-se em relação à herança do antecessor, procurou, de algum modo, que a guerra fosse assunto da ditadura e não da democracia. Outra das razões é a dificuldade em reconhecer, colectivamente, a autoria moral de uma guerra justificada por um conjunto de valores muito difíceis de aceitar nos dias de hoje. Por fim, é também apontado como razão o facto de poder trazer malefícios para Portugal, numa altura em que se procuram adensar as relações económicas e políticas com as antigas colónias. Dissecar esse assunto poderá originar o surgimento de novos conflitos.
De qualquer forma, consideramos que, neste assunto, se justifica o uso da máxima: “Quem não conhece a História, está condenado a repeti-la”.
Estávamos reunidos com um grupo de jovens no momento exacto em que o Presidente da República, nas cerimónias oficiais do 34.º aniversário do 25 de Abril, no Parlamento, declarava: “Impressiona-me que muitos jovens não saibam sequer o que foi o 25 de Abril, nem o que significou para Portugal. Os mais novos, sobretudo, quando interrogados sobre o que sucedeu em 25 de Abril de 1974, produzem afirmações que surpreendem pela ignorância de quem foram os principais protagonistas, pelo total alheamento relativamente ao que era viver num regime autoritário”. O tema do encontro em que participávamos era exactamente a Liberdade. Participavam jovens dos 14 aos 17 anos e de 22 e 26 anos. Nas conversas que tivemos sobre a Liberdade e sobre o 25 de Abril de 1974, não detectámos a insuficiências que refere o Presidente da República. Pelo que pudemos observar todos os jovens têm conhecimento do nome de vários capitães protagonistas na revolução e reconhecem, por exemplo, símbolos ligados ao golpe militar e às mudanças políticas e sociais que se seguiram. Percebe-se que, na escola e em casa, o assunto foi tratado e os jovens têm interesse nisso. No entanto, a sua perspectiva do que era Portugal na altura da revolução é completamente distorcida. Quando falam sobre o tema, percebe-se que as únicas referências que possuem dizem respeito a regras administrativas obsoletas e à falta de liberdade de expressão. Ignoram, acima de tudo, a existência de uma guerra atroz, com 13 anos de duração e dez mil jovens mortos. Facilmente fazem o exercício de se imaginarem a viver nesse tempo. Mas, claro está, imaginam-se dispondo do acesso à informação que têm hoje, ao sistema de educação que têm hoje, com a mobilidade que têm hoje, com a qualidade de vida que têm hoje. Segundo a sua concepção, aquele tempo era igual ao de hoje, só que sem a Liberdade de Expressão. “Havia, porém, mais respeito”, pensam eles. Aliás até conhecem pessoas a quem ouviram dizer que, naquela época, se vivia melhor do que na actualidade. Grande parte dos nossos jovens não tem qualquer noção dos valores da época e, repetimos, desconhecem até a existência de uma guerra para a qual eram mobilizados todos os anos milhares de rapazes.
Esta circunstância é, quanto a nós, muito preocupante e justifica a nossa referência ao perigo de esquecimento total da importância da Guerra Colonial portuguesa no desencadeamento da revolução dos cravos, promovida, exactamente, por capitães.
Se sonegarmos informação sobre a Guerra Colonial poderemos estar a fazer esquecer uma das principais razões, um dos mais fortes argumentos que levaram à legitimação e prossecução do 25 de Abril. Será desajustado pensar que, ao apagar a memória da guerra, corremos o risco de pôr em causa a própria revolução e a própria democracia?