Pró memória
Em memória de Sérgio Jesus Ferreira

A morte de um ente querido é, sempre, uma experiência dolorosa. Experiência que é sempre intensificada se – mesmo não conhecendo a pessoa – sentimos que essa morte aconteceu por nós. E a morte em serviço de um bombeiro voluntário acontece, sempre, pelos outros, por nós.
Está gasto o discurso de grande elogio aos bombeiros voluntários portugueses que – sem qualquer recompensa ou compensação – se entregam em esforço de “Vida por Vida”. E está consumida essa retórica de auto-comiseração se, acima de tudo, ela for cheia de boas intenções, mas vazia de conteúdo.
Sérgio Miguel de Jesus Ferreira tinha 28 anos e faleceu a caminho de um fogo florestal, num acidente de viação. Era bombeiro voluntário, tinha interrompido a sua ação durante dois anos e regressara há pouco tempo à ação humanitária, altruísta e filantrópica de emprestar a sua vida em proteção da vida – no socorro e na doença – e dos bens das outras pessoas, já não só da sua comunidade, mas, também, do seu país. Sérgio emprestou a sua vida aos outros, emprestou a sua vida a nós, e nós não lha poderemos devolver.
Teremos de nos conformar com isso. Os seus familiares, a sua namorada, os seus amigos vão ter se conformar com isso… Mas ainda vamos a tempo de exigir que a vida de Sérgio Ferreira não tenha sido em vão.
A vida de Sérgio Ferreira não terá sido em vão se cada um de nós continuar a apoiar as corporações de bombeiros como associados, como donatários beneméritos, como dirigentes e colaboradores das associações que sustentam os corpos ativos.
A vida de Sérgio Ferreira não terá sido em vão se cada um de nós, cidadãos, exigir que os autarcas e governantes assumam que os bombeiros voluntários portugueses desempenham uma responsabilidade de soberania nacional e por causa disso merecem ser reconhecidos. Um reconhecimento que deve ser feito através de um Estatuto do Bombeiro que não prejudica o cidadão bombeiro por ele ser voluntário e altruísta. Um reconhecimento que deve ser feito através do apoio efetivo e financeiro do próprio Estado às corporações de bombeiros para que elas adquiram material de proteção individual de qualidade, veículos e ferramentas. Um reconhecimento que deve ser feito através da não obstaculização às fontes de receita das associações, como é este sistema integrado de gestão de transporte programado de doentes que está a levar as nossas associações à bancarrota em beneficio de não se percebe bem quem. Um reconhecimento que deve ser feito através da não obstaculização pelos serviços da administração central por causa de regras burocráticas e mesquinhas do carimbo e do papel de vinte e cinco linhas.
A vida de Sérgio Ferreira não terá sido em vão se cada um de nós, cidadãos, nos manifestarmos contra o esbanjamento de recursos à conta de meia dúzia de generais das estruturas nacionais de Protecção Civil que se dão ao luxo de pagar a empresas privadas dezenas de milhares de euros por três meses, no Verão, por tarefas que os bombeiros voluntários – que têm de andar de mão estendida para ter dinheiro para socorrer os outros – desempenham de forma muito mais qualificada e eficiente.
A vida de Sérgio Ferreira não terá sido em vão se cada um de nós, pais, filhos e educadores, incentivarmos os nossos jovens ao serviço voluntário, nos Bombeiros, colocando a sua energia vital ao serviço dos outros. Se passarmos a olhar para os bombeiros com respeito, como gente garbosa e dedicada, que gosta da adrenalina, de algum perigo, mas do Serviço e da entrega ao próximo.
A vida de Sérgio Ferreira não terá sido em vão se cada bombeiro perceber, também, que é preciso ter sempre em mente que a segurança é o seu maior aliado. Que não vale a pena ir a correr para um fogo, por causa de menos um metro quadrado ou três eucaliptos ardidos. Que não vale a pena deixar de colocar o equipamento de protecção individual só porque o tempo escasseia ou porque um acidentado chora por ajuda. Que não vale a pena poupar um minuto se a sua vida pode ser destruída num minuto. Que não vale a pena atingir estados de exaustão completa se isso significar perigo para si próprio.

No dia 24 de julho de 1989, noite fatídica, há precisamente 22 anos, a caminho de um incêndio em Enxofães, José António Martins Andrade, bombeiro dos Voluntários da Mealhada, falecia, na estrada junto ao entroncamento que dá acesso à Antes. José Andrade faleceu, quatro dos seus colegas ficaram feridos, depois de ter sido cuspido da viatura que se despistava. Não foi queimado, nem atraiçoado pelo fogo ou pela escassez de meios. Foi atraiçoado pela pressa, a caminho de um fogo.
Quando isto aconteceu, há vinte e dois anos, Sérgio Miguel de Jesus Ferreira tinha seis anos. Era uma criança. Se calhar já sonhava ser bombeiro e provavelmente nunca ouviu falar de José Andrade. Viria a falecer da mesma maneira, nas mesmas circunstâncias.
E quantas vezes a história se vai repetir?
Que a vida de um bombeiro nunca seja em vão, porque se todos os humanos nos fazem falta, o coração de um bombeiro faz ainda mais falta.

Editorial do Jornal da Mealhada de 3 de agosto de 2011
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