Ela Canta, Pobre Ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso!
Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Fernando Pessoa, in “Cancioneiro”
*
Gosto imenso deste poema. E lembro-me muitas dele, e recito o primeiro verso. Quando estou cansado de mim mesmo. Quando vejo os outros felizes com menos do que eu e, mesmo assim, irradiando felicidade, penso nesta ceifeira. Quando vejo alguém com uma vida comedida, sem rasgo e sem preocupações, sem angústias, lembro-me deste poema.
«Ah, poder ser tu, sendo eu! /Ter a tua alegre inconsciência, /E a consciência disso!», era tão bom! Esta intranquilidade, este querer abraçar o mundo com estes dois braços, este achar que se está do Lado Bom da Força e se tem a ajuda da Verdade… leva-me onde? A esta angústia, esta intranquilidade, este travo de insatisfação na boca? Será?
Merda para isto tudo! «Pesa tanto e a vida é tão breve!»