A berlusconização de Sócrates
A divulgação do conteúdo de conversas telefónicas é, à partida, uma coisa execrável. A divulgação do conteúdo de conversas telefónicas, resultado de escutas feitas no âmbito da investigação de um processo judicial, é abominável. A divulgação de conversas telefónicas integradas em processos judiciais entretanto arquivados pelo Ministério Público é lamentável. A divulgação de opiniões na comunicação social feita com base em declarações de terceiras pessoas no que comummente se pode classificar como diz-que-disse, não tem suporte moral e deontológico e, por isso, não deve ser incentivado nem consentido. Estes actos, sejam eles feitos por órgãos de comunicação social sejam por colaboradores, mesmo que jornalistas credenciados, digam eles respeito a pessoas titulares de órgãos de soberania ou não, são repudiáveis.
Acreditamos, no entanto, que têm consciência disso, e partilham desta opinião, os directores dos órgãos de comunicação social que divulgaram as escutas telefónicas que dão conta de que o primeiro-ministro de Portugal, alegadamente, se envolveu numa estratégica com vista ao condicionamento de órgãos de comunicação social por via económica e administrativa. Acreditamos que, apesar disso, terá sido em nome do interesse informativo e do direito dos portugueses à informação que entenderam publicar esse conteúdo que, a provar-se ser verdadeiro, é sério e muito grave.
Partilhamos a opinião de que há que saber distinguir a mensagem do mensageiro. O mensageiro – a comunicação social – pode não ter procedido de uma maneira por todos aceitável. Mas, por outro lado, não se pode ignorar que é relevante a mensagem que põe em causa o carácter de um titular de um cargo público. As escutas telefónicas que envolvem o primeiro-ministro são muito sérias e, pese embora poderem não constituir crime – assim o entendeu o Ministério Público –, constituem um comportamento censurável e repudiante.
Julgar sumariamente o primeiro-ministro e condená-lo imediatamente com base nos dados de que dispomos, seria usar um recurso idêntico ao que condenávamos. É por isso que entendemos que o primeiro-ministro devia apresentar explicações, sem demora, a propósito do conteúdo das escutas que parecem indiciar a existência de uma estratégia de constrangimento da TVI, no sentido de afastar José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes, de uma estratégia de constrangimento do jornal Público e de afastamento do seu antigo director José Manuel Fernandes, de uma estratégia de constrangimento do Correio da Manhã, de Mário Crespo. Para além das classificações do trabalho de jornalistas com epítetos como jornalismo de sarjeta ou calhandrice.
O primeiro-ministro tem obrigação de dar esclarecimentos e devia fazê-lo quanto antes. Não está em causa, desta vez, se beneficiou ou não um consórcio empresarial na obtenção de uma licença – como poderá ter sucedido no caso Freeport. Não está em causa se foi benefíciado na obtenção do seu grau académico. Já nada disso está em causa. Hoje estamos perante a suspeita de que o chefe do Governo move influências pessoais e estatais – usando meios e predicados exclusivos do Estado – para, em beneficio próprio, pessoal, controlar a comunicação social, procurando afastar os jornalistas e os órgãos de comunicação social que teriam mostrado ser menos apoiantes. Trata-se de uma acusação muito grave, que no caso de não ser verdadeira não pode, de maneira nenhuma, continuar a pesar ou impender sobre o chefe do Governo. Pelo que José Sócrates, e nesse sentido deviam aconselhá-lo os seus mais próximos, devia explicar-se de forma inequívoca. Consideramos que, para já, não há razões para exigir que se demita, como alguns parecem sugerir. Mas o esclarecimento deve ser rápido e satisfatório.
Em Itália, o primeiro-ministro, Sílvio Berlusconi, é um magnata da comunicação social. Comprou os órgãos informativos que lhe permitem minimizar, junto dos italianos, a sua imagem de homem corrupto e mafioso, com deficiências de carácter. Fê-lo com o seu próprio património e só depois se abalançou na chefia do Governo. Segundo as acusações a que aludimos, José Sócrates procuraria, a partir de São Bento, controlar a comunicação social, com recurso aos meios das empresas públicas e do Estado, com o objectivo de domesticar quem lhe parece mais hostil. Não serão, apenas, duas faces da mesma moeda?
Editorial do Jornal da Mealhada de 10 de Fevereiro de 2010