Ensaio sobre a obscuridade
A propósito da abstenção nas regionais dos Açores e dos brancos no PSD de Anadia
Realizaram-se no domingo, 19 de Outubro, as eleições regionais dos Açores. Tratou-se do primeiro de um conjunto de quatro actos eleitorais que se completará, previsivelmente, em menos de um ano. O Partido Socialista, com Carlos César, conseguiu renovar, na Região Autónoma dos Açores, a maioria absoluta e o parlamento regional ganhou colorido com a eleição de deputados de partidos que até agora não tinham representação nos órgãos políticos regionais. Tudo seria positivo, uma vitória da democracia autonómica, se não fosse o facto de mais de metade dos eleitores não ter participado no acto.
Por quanto tempo ignoraremos os sinais que, sucessivamente, eleição após eleição, nos vão sendo dados por um sistema político que já não atrai os cidadãos a participar na gestão do que é de todos?
Os Açores têm 192 mil eleitores, aproximadamente. No entanto, mais de metade, 102 mil, decidiram não votar. Porque o terão feito? Importa fazer a pergunta.
Nas eleições presidenciais, nas legislativas nacionais, nas autárquicas e nas eleições para o Parlamento Europeu, os níveis de abstenção são substancialmente mais baixos. Estarão, desta forma, os açorianos a manifestar o seu desacordo em relação à própria autonomia? Estarão os açorianos a repudiar o caciquismo doentio, característico das autonomias portuguesas?
Pondo de parte as habituais desculpas da chuva, que afasta as pessoas das urnas, e do sol, que leva as pessoas para a praia e as afasta das urnas, é urgente questionar, procurar saber por que razão os portugueses estão cada vez mais distantes da participação política.
Declarações como as do vencedor, Carlos César, também não ajudam na procura de respostas. Para o presidente do Governo regional dos Açores “a baixa participação é característica das democracias consolidadas”. “A abstenção foi elevada e houve uma quebra significativa de mobilização e de motivação nestas eleições, em virtude da presunção de vitória que havia à volta do Partido Socialista”, terá afirmado, também. E ainda: “Os partidos com mais votos têm menos responsabilidades na abstenção”, e “o que conta, em democracia, são as pessoas que votam em dia de eleições”.
Quando nos debruçamos sobre a questão da falta de participação dos cidadãos no sufrágio político vem-nos à ideia uma outra questão, usada literariamente por José Saramago, em “Ensaio sobre a Lucidez”, que é a questão da valoração política dos votos em branco. Dito de outra forma: Que significa um voto em branco? Que conclusão deve tirar-se de um número tão significativo de votos em branco?
No livro do Nobel da Literatura, a solução encontrada para reagir ao resultado eleitoral de uma cidade cujos eleitores, sem terem sido mobilizados para isso, votaram maioritariamente em branco, foi o ostracismo. A cidade é isolada do resto do território. “Antes que a pestilência e a gangrena alastrem à parte ainda sã do país”, justifica um dos personagens na obra.
Hipótese muitas vezes considerada academicamente para resolução do síndrome dos votos em branco é a das cadeiras vazias — Se, para eleger um parlamento de duzentos lugares, houvesse dez milhões de eleitores, se nessa eleição só votassem metade, então só metade dos mandatos seria distribuída. E se metade desses eleitores tivesse votado em branco, então só cinquenta cadeiras ficariam ocupadas por representantes parlamentares.
Tudo isto são conjecturas académicas, mais ou menos bem-humoradas, que nos assomam ao pensamento quando analisamos estas questões. Mas o problema existe e só a obscuridade nos impede de nos prepararmos para lidarmos com ele, quando ele nos assomar.
Uma obscuridade que resulta da ideia de que este é um problema dos quadros dos partidos políticos e dos governantes. Ou uma obscuridade que resulta da ideia de que este “não é um problema dos partidos que ganham mais votos”, como disse Carlos César. Ou a obscuridade que resulta da ideia de considerar que só não vota quem é negligente ou despreocupado com os outros. Ou a obscuridade que resulta da tão propalada máxima de que “só interessam os que cá estão”, que neste contexto da governação da coisa pública se cingiria a terem direitos só os que participam.
Se é verdade que esta obscuridade nos tolhe, a todos de um modo geral, não é menos verdade que o problema não está assim tão distante… Em Anadia, a 10 de Outubro, nas eleições para as estruturas distritais do PSD de Aveiro, nas eleições para a comissão política distrital, trinta e nove militantes social-democratas votaram na lista A, que era única, e cinquenta e cinco votaram em branco. Para a mesa da assembleia distrital, quarenta e três votaram na lista única, mas cinquenta e um votaram em branco. Para o conselho de jurisdição quarenta votaram na lista única e cinquenta e quatro votaram em branco. É verdade que, tratando-se de uma eleição distrital, para a eleição de cada órgão distrital são somados os votos das dezanove secções concelhias do distrito, e, deste modo, os votos em branco de Anadia diluem-se. Mas… e se estivéssemos a falar, não de uma eleição distrital, mas de uma eleição concelhia? Quem ocuparia o lugar dos eleitos? Note-se que o exemplo que damos é de uma eleição interna do PSD, um dos partidos que “ganha muitos votos”. O que prova que a gangrena já chegou aos partidos, aos partidos do arco do poder, e já corrói por dentro.