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E nós, os europeus? — segunda parte

Na quinta-feira, 12 de Junho, os irlandeses foram chamados a pronunciar-se sobre a decisão de ratificar ou não o Tratado Reformador da União Europeia, acordado pelos vinte e sete líderes europeus em Lisboa, no dia 19 de Outubro, assinado na mesma cidade a 13 de Dezembro e, por isso tudo, chamado Tratado de Lisboa. Mais de cinquenta e três por cento dos irlandeses que participaram no referendo preferiram não aprovar a ratificação do documento. Apesar de representarem apenas um por cento dos quatrocentos e noventa milhões de habitantes da União Europeia (UE) os irlandeses inviabilizaram a entrada em vigor do tratado a 1 de Janeiro de 2009 e, consequentemente, a eleição de um novo Parlamento Europeu em Junho de 2009, a escolha da presidência da Comissão Europeia e a eleição de um presidente da UE.
Do resultado deste referendo decorrem, imediatamente, duas lições que importaria considerar.
A primeira lição é dirigida aos que, como nós, consideravam que um referendo, em Portugal, à ratificação do Tratado de Lisboa, poderia servir como forma de plebiscitar, finalmente, a integração europeia. Este resultado demonstra que os cidadãos estão conscientes do alcance da pergunta que lhes é feita pelo referendo e de que, se são chamados a pronunciar-se sobre o tratado, é sobre isso que votam. Se tivesse havido um referendo em Portugal, a participação seria mínima, e o ‘Não’ ao Tratado ganharia sem que isso quisesse dizer que os portugueses estão contra a integração europeia. Os votos recentemente alcançados em eleições pelos partidos irlandeses que decidiram apoiar o ‘Sim’ ao tratado correspondem a mais de oitenta por cento dos eleitores desse país. Mesmo assim, o ‘Não’ ganhou. Consideramos que em Portugal deveria ter havido um referendo ao Tratado de Lisboa, porque assim o prometeram, em campanha eleitoral, PS, PSD e CDS/PP. Reconhecemos hoje, no entanto, que a necessidade de plebiscito à integração de Portugal na UE deveria fazer-se, mas de forma autónoma em relação à ratificação de tratados reformadores.
A segunda lição do referendo irlandês é dirigida aos vinte e seis líderes da UE que, entre si, acordaram que nos países que representavam a ratificação do tratado não seria feita por via referendária. O único país da União que a tal é obrigado, por imperativo jurisprudencial, é a Irlanda. Todos os outros países decidiram evitar esse sistema. Em 24 de Outubro de 2007, no Editorial, escrevemos: “Esse acordo é, para todos os efeitos, uma falta de respeito aos cidadãos europeus”. Mesmo assim, e aí está a lição a tirar, o Tratado de Lisboa não vai entrar em vigor na data prevista. Ou seja, esse desrespeito aos cidadãos europeus — porque muitos, os portugueses, por exemplo, ouviram do seu primeiro-ministro que o tratado iria ser referendado — não compensou. Serviu para coisa nenhuma. O efeito prático, na óptica da alegada necessidade de velocidade no processo de construção europeia, é nulo.
A decisão dos líderes europeus de não referendarem a ratificação do tratado pode ser nula, mas o resultado do referendo irlandês traz várias consequências. A primeira delas é a travagem a fundo de todo este processo uma vez que o tratado só pode vigorar se for aprovado por todos os Estados. Apesar de ser consensual a ideia de que os oito países que ainda não ratificaram o tratado o devem fazer sem esperar pela Irlanda. A segunda consequência deste resultado é o facto de o tratado ter de ser alterado, nem que seja numa vírgula qualquer, para que possa ser, novamente referendado — no prazo de um ano, possivelmente. Acontece que esta ‘vírgula’ pode não ser só uma minudência… e pode resultar na cedência a uma excepção irlandesa… e todos os líderes da UE aceitarem que a Irlanda mantenha um comissário europeu até 2014, só para ultrapassar a situação, mesmo que com um ano de atraso.
Os irlandeses votaram contra a ratificação do Tratado de Lisboa, como já tinham votado contra o Tratado de Maastricht, em 1992, como já tinham votado contra o Tratado de Nice, em 2001. Nestes dois casos os irlandeses rejeitaram a ratificação num primeiro referendo, a seguir o Conselho Europeu aprovou uma ou duas excepções, fez algumas cedências e os irlandeses foram chamados a referendo uma segunda vez… E depois aprovaram. O mesmo se passou com a Dinamarca noutras duas situações.
Ou seja, quem referenda, especialmente se o resultado for negativo, ganha sempre. Quem não referenda pode passar por menino bem-comportado… mas nunca ganha nada.