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Língua pátria

O parlamento aprovará, nos próximos dias, o segundo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, documento que visa unificar a grafia do português. O Governo português já aprovou uma resolução nesse sentido e o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já aprovaram a aplicação do protocolo nos seus territórios. Em termos teóricos, bastaria a aprovação desse protocolo por três países para que ele vigorasse, mas, na prática, aguarda-se a sua aprovação por Portugal para que isso aconteça. Se for aprovado, dentro de seis anos o acordo estará em vigor na totalidade do território da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP).

O assunto tem sido debatido na sociedade portuguesa e há, naturalmente, quem se coloque contra o acordo e quem se coloque a favor. De ambos os lados estão professores, escritores, livreiros ou políticos, pelo que não pode considerar-se haver neste assunto corporativismo algum. A discussão está apaixonada e há argumentos que consideramos válidos de parte a parte.

A língua é um sistema dinâmico que se adequa aos tempos, vai evoluindo pela boca dos falantes, e todos os dias se transforma um pouco. Sofre influências, acolhe simplificações, estrangeirismos, termos técnicos. Assim, no âmbito da presente discussão, não se trata de mudar a língua — ela muda por si —, mas, tão só, de mudar as regras ortográficas, as regras que estabelecem de que forma se escrevem as palavras. Não se alterará a pronúncia, nem o uso ou o significado de palavras e expressões, nem será criada nem eliminada nenhuma palavra. Não são estabelecidas novas regras de sintaxe, não se interfere com a coexistência de regras ou normas linguísticas regionais.

O que muda então? As diferenças actuais variam de país para país. Trata-se de um acordo de homogeneização, em que todos cedem alguma coisa. Os brasileiros, por exemplo, deixarão de usar o trema — sinal gráfico utilizado para dar independência a uma vogal, o u, isto é, para indicar que ele se lê em palavras como frequente, arguido, sanguíneo, etc. Esse sinal já não é usado numa série de jornais e revistas de referência da imprensa brasileira. Os portugueses deixarão de escrever letras que não se lêem — como o c em director ou em acção, ou como o p, em peremptório, baptismo, etc. Todos cedem em relação à acentuação de determinadas palavras, ou ao uso do hífen, por exemplo.

Em Portugal já se usou o trema, já se escreveu pharmácia e philosofia, já se aboliram acentos, no entanto, continua a haver reticências em relação a estas novas transformações. Como não podia deixar de ser, mesmo que algumas razões científicas sejam apontadas, as principais objecções são de natureza política e económica. Curiosamente são da mesma natureza muitos dos argumentos favoráveis.

Comecemos pelos argumentos políticos. Vasco Graça Moura, poeta, político e opositor do acordo, considera que se trata de uma cedência aos interesses brasileiros e fomentará o aumento da influência cultural e política do Brasil nos países africanos de expressão portuguesa. Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, por outro lado, a favor do acordo, considera que a aprovação desse documento é estratégica e extremamente importante para a visibilidade e afirmação da língua portuguesa no mundo, o idioma oficial de uma comunidade de duzentos e cinquenta milhões de falantes. A Associação Portuguesa de Escritores e Livreiros (APEL), contra o acordo, diz que não há dúvidas de que as instituições internacionais, a partir do momento em que Portugal ceder às intenções do Brasil, não hesitarão em ter como referência o português daquele país. Considera a APEL que o objectivo de globalizar a língua portuguesa será, assim, defraudado.

Há também argumentos económicos. Os que são contra o acordo consideram que os livreiros brasileiros, com um mercado de muitas dezenas de milhões de leitores, esmagarão o negócio em Portugal e, como já se disse atrás, implantar-se-ão no mercado africano que, apesar de tudo, está em expansão. “A nova grafia entrará rapidamente nos nossos hábitos e nenhum livro será destruído”, argumenta, por outro lado Carlos Reis. Este intelectual considera, também, que, apesar da aprovação do acordo, continuarão a existir diferenças frásicas e vocabulares e diferenças, também, na ordem dos elementos constitutivos das frases entre as variantes portuguesa e brasileira, o que continuará a levar à existência de vários mercados.

Se analisarmos atentamente o teor do acordo e as inovações que apresenta, rapidamente chegamos à conclusão de que as mudanças serão muito mais na economia das letras do que na política do raciocínio. Se hoje, apenas pela grafia, não distinguimos o canto da sala do canto dos pássaros, no futuro não conseguiremos distinguir os que vêem com os olhos e os que vêm a passo (grafar-se-á veem, em ambos os casos). Um facto será sempre um facto, em Portugal, mesmo que do outro lado do Atlântico se grafe sem o c. Tudo se há-de arranjar… e o há-de há de perder o hífen… Perderemos em mais alguma coisa? Não teremos perdido a oportunidade de dar ao que se fala acima do rio Minho o estatuto de português da Galiza? Não teremos, por outro lado, ganho em simplicidade da língua?

Evanildo Bechara, linguista, membro da Academia Brasileira das Letras, considera que estabelecer um acordo ortográfico nas instâncias de ensino não impede os escritores de escolher a sua ortografia ou o homem comum de grafar como aprendeu na escola.

No Jornal da Mealhada, assim que as instituições nacionais o determinarem, começaremos a grafar as palavras de acordo com as novas regras.

Adriano Moreira, presidente da Academia das Ciências de Lisboa, instituição que, com a Academia Brasileira das Letras, negociou, cientificamente, as bases do acordo ortográfico, declarou recentemente que a língua portuguesa não era apenas dos portugueses. “Nenhuma soberania é dona da língua”, frisou.

Editorial do Jornal da Mealhada de 9 de Abril